sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O menino que escrevia versos (Mia Couto)

"De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem?

De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?"

sábado, 11 de outubro de 2008

"Os olhos azuis, estranhamente inexpressivos, fixam-se com uma indiferença pagã no pilar em frente."

em As Ondas, de Virginia Woolf.



Os olhos azuis, estranhamente expressivos, fixam-se em mim sem a indeferença a que me havia acostumado. Consomem-me.

sábado, 23 de agosto de 2008

3:57

Alice. 15 anos sem a ver e uma mudança de sexo em cima. Bastou-me um minuto de conversa com ela para a reconhecer. A mesma alegria de viver, a mesma determinação, os mesmos sonhos... De facto, há coisas que o sexo não muda.



3:53
Na rua onde eu morava viviam duas irmãs gémeas, a Rosa e a Fuschia. A Rosa queria ser princesa. Aos 13 anos descobriu que os príncipes só comiam frango assado e mudou de ideias. A Fuschia queria saber tudo sobre. Não sabia (quase) nada.

“Quem brinca com o gato arranha-se”, dizia a Rosa. “Quem procura sarilhos arranja-os”, concluía a Fuschia.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Sal na Pele
Vivia entre duas aldeias piscatórias, numa casa pequena, perto de Yorkshire, Inglaterra. Era a mais nova de sete irmãos e chamava-se Virginía, mas todos a tratavam por "Wolf", porque todos sabiam que o seu nome, assim como o dos seus irmãos, que se chamavam Oscar, Sylvia, Hans, Margueritte, Ernest e William, era uma homenagem à literatura, paixão da sua mãe.
Desde pequena que Wolf se deixava deslumbrar pelo mar. Aprendeu a deslumbrar-se, respeitando-o, já que era o sustento da sua familía. Mesmo vivendo com um certo receio de perder o pai e os irmãos para o mar, continuava a sonhar navegá-lo: desejava-o. Quando entrávamos no seu quarto, pequeno e proporcional à casa, não era possível ver as paredes, apenas grandes mapas cheios de pontos vermelhos que correspondiam a lugares onde Wolf queria chegar com o Liberty, o barco da familía. Mas as paredes do seu quarto também serviam de local de exposição para as fotografias e retratos tirados por Jonathan, o seu maior amigo, com quem partilhava o gosto pelas viagens.
Wolf lembrava-se da primeira vez que embarcou no Liberty "como se tivesse sido hoje mesmo". No entanto, já passava mais de uma década.
Em todas as viagens que fez no seu barco, Wolf não dispensou levar consigo o telescópio oferecido pelo seu irmão Hans, a quem carinhosamente apelidou de Stardust, e Lisboa, o seu Terra Nova, o maior Terra Nova do norte de Yorkshire, oferecido ao seu pai por um marinheiro português com quem fez amizade. Um verdadeiro "Newfoundland" para uma Wolf com vontade de descobrir o mundo.
Saíam do porto de madrugada, todos os dias, e voltavam sempre de manhã cedo, para vender o que o mar lhes tinha dado durante a noite. Nas noites em que Wolf não saía para o mar, ou porque tinha de estudar, ou porque alguém tinha de cuidar da avó Elizabeth, sentia que o resto do dia não faria qualquer sentido. Fazia-lhe falta o trabalho dentro do barco. Faziam-lhe falta as tentativas falhadas de conseguir sintonizar o rádio do barco numa estação nacional.
"Wo(o)lf of the Seas", como passou a chamar-lhe Roger, o amigo de Hans, Ernest e Oscar, que trabalha no barco em troca de umas boleias até ao porto principal, era a única na familía, para além do pai e dos irmãos, que se sentia feliz a lançar e recolher redes, ou a pôr peixe em caixas de gelo.
Nos dias em que não tinha muitos recados a fazer, nem aulas de tarde, Wolf gostava de estar com Jonathan. Os seus dias resumiam-se: à falésia, se estivesse mais frio; à colina, se estivesse mais calor; ao laboratório de fotografia que Jonathan havia montado na casa-de-banho do quintal de sua casa; ou ao "Áncora", o pub. Se Jonathan não podia estar com ela, então juntava-se ao pai em interminavéis sessões de cinema. Os filmes do Jacques Costeau eram os preferidos do pai, que os devorava durante horas.
Jonathan andava a insistir, há já algum tempo, em tirar-lhe umas fotografias e então combinaram encontrar-se na falésia, local de eleição. Tudo era partilhável, entre os dois. No dia da sessão de que Jonathan tanta questão fazia, não foi diferente. As palavras não foram muitas, mas os gestos valeram mais. Gostavam de beijos e abraços.
Havia qualquer coisa de estranho entre os dois e ambos sabiam disso. Jonathan queria tocar-lhe e não parar de fazê-lo e ao contrário do que sempre imaginou, Wolf não se sentia nada incomodada com isso.
Naquela tarde na falésia, Virginía Wolf, com o vento a soprar-lhe nos cabelos aloirados e com os olhos em Jonathan, que a olhava através da lente da máquina, decidiu aproximar-se do amigo, desviou a máquina e beijou-o. Voltou a afastar-se, mas pouco, e ficou à espera que o seu beijo fosse retribuído. Não esperou muito.
A noie estava quase a cair. Caía cedo, de Inverno. Wolf foi para casa, mas combinou encontrar-se com ele após o jantar, perto do "Áncora".
Habituada ao sal na pele e ao cheiro a peixe nas mãos, cortadas pelas redes que fiava, ela e os irmãos iam sair para o mar, mas o pai hoje não ia, estava doente, por isso iam trabalhar a dobrar.
Terminado o jantar, vestiu a sua camisola mais quente e pegou no impermeável. Pôs a mochila às costas, pegou no Stardust e chamou Lisboa. Foi ter com Jonathan, como combinado. Por volta da meia-noite, despediu-se do amigo e dirigiu-se ao Liberty. Havia muito a preparar ainda, mas estava ansiosa para mais uma saída nocturna no barco. Tudo para além do mar podia esperar mais uma noite.
Nunca conheci a Woolf, mas gostava que, em algum momento e por algum motivo, a minha vida se tivesse cruzado com a dela. Incrível a quantidade de coisas que podemos deixar escritas num diário sem nunca pensarmos, se quer, na hipótese de um dia o perdermos.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Na manhã de S. João.

sábado, 14 de junho de 2008

E que o Daniel Day-Lewis esteja convosco. Amén.

domingo, 18 de maio de 2008

Guerra

“Eu fui amaldiçoada.”, Acho que esta é uma das frases que mais ouvi a minha mãe dizer e tudo porque o meu pai morreu sem me conhecer.
Morreu novo, na guerra, e a minha mãe viu tudo, era repórter na altura. Achava que tinha uma missão, que devia passar por momentos cruéis, ver sangue e morte para depois mostrar ao mundo os podres da guerra e de quem a faz. Claro que depois apareceu o meu pai e a minha mãe começou a ver a vida de outra maneira.
Ela dizia que ele era um homem muito bonito e que eu tinha mais traços dele do que dela. As sardas e os cabelos pretos nunca foram uma combinação muito vulgar.Acho que ele era um homem muito bom e um dos melhores soldados, mesmo tendo sido forçado a entrar naquela guerra. Ele estava contra ela e por isso não devia ter morrido a combater.
A vida abandonou o meu pai mais cedo do que o que era suposto e eu e a minha mãe estávamos destinadas a ficar sozinhas, porque ela não estava disposta a amar outra vez. Acredito que se fosse ao contrário, se tivesse sido a minha mãe a morrer, o meu pai ia sentir o mesmo. Eles eram o mesmo ser, completavam-se e nunca pensaram, se quer, em separar-se. Uma vez a minha mãe disse-me que é muito difícil sentir-se amor, carinho, amizade e paixão pela mesma pessoa, e eles conheceram-se num momento tão complicado, passaram tanto tempo juntos, que acabaram por sentir tudo isso um pelo outro.
Foi a minha mãe que encontrou o meu pai morto e isso foi o pior que podia ter acontecido. Nunca mais tirou a imagem do corpo dele, desfeito, da sua cabeça. Desde aí, a ideia de que também ela devia ter morrido não a abandonou mais, assim como as doenças que começaram a afecta-la tanto psicológica como fisicamente, doenças essas que acabaram por tirá-la de mim.
Ela tinha um baú onde guardava todos os retratos que tirou do meu pai e todas as imagens de medo e ódio que captou com a sua Zeiss Ikon que tanto adorava. Hoje esse baú é meu, é parte do que eu sou e também como a minha mãe eu abro-a todos os dias e penso o quão irónica e imprevisível a vida é.
Para ser sincera, agora eu é que me sinto amaldiçoada. Nem duas décadas de vida tenho e já sou orfã de pai e mãe. Ela deixou-me, finalmente conseguiu o que queria, vai ter com ele, e não sei se hei de ficar feliz por isso, por o sofrimento dela ter acabado, ou se me hei de sentir a pessoa mais atraiçoada do mundo por ter tido uma mãe que nunca soube amar sozinha. Deixou-me, sem piedade, porque viveu todos estes anos submersa no passado, esquecendo-se que metade de mim é ele e que eu podia ter sido o motivo para continuar viva.
A minha mãe viveu de amor e egoísmo, viveu das sombras da guerra. Não era perfeita e acabou por morrer nas mãos do que a manteve viva.

terça-feira, 25 de março de 2008

Testemunho de uma "cigana"(postado pela segunda vez)

Desde que me conheço por gente que levo vida de cigana, mas nunca o fui. Lembro-me de nós como uns apaixonados pelo mundo, mas mais do que isso, apaixonados uns pelos outros.
Sempre que chegávamos a 23 de Agosto, arrumávamos tudo na carrinha e lá íamos nós, com um mapa na mão e um destino já traçado. Acho que nos habituamos aquela vida itinerante. Quando chegávamos a um lugar já estávamos a pensar no próximo. Era viciante!
No dia em que os deixei para trás, o meu irmão Frederick era ainda um rapazinho e eu tinha acabado de atingir a maioridade. Apaixonei-me por um norueguês de barba loira. A Anika, a minha irmã, nunca vai abandonar a minha mãe. Não a acho capaz de se entregar a mais nada ou ninguém para além daquele vicio.
Sempre achei a minha mãe muito bonita. Nas minhas primeiras crises existenciais lamentei não ter saído a ela. Nasci ruiva e com o corpo coberto de sardas, enquanto que ela (dizem) é parecida à Agnetha Fältskag.
Tinha 13 anos quando a minha mãe me explicou, de forma adulta, o que era o amor e quando aprendi que “jag älskar dig” em francês é “je t’aime”. Na altura podia jurar que aquele meu primeiro “je t’aime” ia ser para sempre, mas agora tenho um lar e não sei se algum dia vou querer voltar a ser “cigana”. Sei que se não achasse que valia a pena deixá-los não o tinha feito, mas agora passo meses sem saber se a Anika e a minha mãe estão bem e por onde anda o Frederick… São longos períodos à espera de noticias deles e essa é a parte mais difícil.
O meu cabelo já não é tão ruivo, mas as sardas nunca desapareceram e nunca chegamos a ir a Marrocos. A verdade é que eu não guardo más recordações da vida de andarilho e custa-me pensar que um dia posso acordar arrependida e a desejar o “23 de Agosto”.
Eu vou ser sempre uma Nilson, só que a Nilson que foi num cruzeiro pelos Fiordes e não voltou mais.
Às vezes pergunto-me se foi um erro, se vou deixar de ser feliz só porque parei de viajar. A Anika costumava dizer que “ser feliz é conhecer o mundo”, mas eu quero acreditar que posso ser feliz aqui.
Take You On A Cruise - Interpol

"(...) We sail today, tears drown in in the wake of delight
There's nothing like this built today
You'll never see a finer ship in your life
Along the way the seas will crowd us with lovers at night
There's nothing like this built today
You'll never see a finer ship or receive a better tip in your life
(...) Oh my love we're sailing to Norway"

quarta-feira, 5 de março de 2008

Aqui Há Magnólias (parte 2)
Discretamente, abriu a porta da garagem. A magnólia já lá estava, em cima do carro, o que queria dizer que ele já tinha chegado. Olhou para trás, sorridente, e viu-o, encostado à porta. Ele tirou o cigarro da orelha com a calma do costume (mas por dentro estava em chamas), acendeu-o, levou o à boca uma vez, aproximou-se dela e abraçou-a, com a mesma força e o mesmo calor de sempre. Ela tirou-lhe o cachecol, agarrou-se ao pescoço dele, ofereceu-lhe os seus adocicados lábios (andava viciada em chupa-chupas em forma de coração) para que fossem beijados e assim deram inicio à interminável sessão de amor.
Juntos, o amor proliferava-se. Os beijos dele proliferavam-se pelas sardas do corpo dela, que se chamava R mas tinha ar de H, as mãos dela puxavam os cabelos dele e não havia como fazer este câmbio de afectos durar pouco.... Na verdade o que mais queriam é que durasse muito, muito tempo. O máximo possível! Mas quando o fim chegava e o corpo pedia descanso, também a magnólia, assim como os lábios do B, visitava a sardenta R.
Fazia muito vento e frio na rua, mas a única coisa que a fazia tremer era ele.

terça-feira, 4 de março de 2008

Aqui Há Magnólias (parte 1)

R,

Desculpa não ter dito nada hoje. Sei que quando faz mais vento é quando gostas que te abrace mais, mas não consegui mesmo sair para ir ter contigo. Compenso-te amanhã. O vento vai estar forte durante muitos dias. Ouvi na rádio.
Acordei a pensar naquela vez ao pé de tua casa. Estou a compor para ti. Tenho saudades tuas.

B.



B,

Gosto quando decides ser delicado. Promete que vens. Tenho saudades do fumo do teu cigarro a tocar nos meus lábios, das tuas mãos. Aparece por volta das 22h e traz uma magnólia. O carro vai estar parado na garagem. Amo-te.
P.S.: Acordei a pensar no mesmo. Às vezes acho que saíste de um sonho...
R.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

E geladas, deitadas em cobertores finos como folhas de papel, a única coisa que as aquecia era o amor.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Amiga Parência

Hoje está um dia mesmo bonito. Céu limpo, muito Sol e, no entanto, pouco calor. Eu até nem sou pessoa de adorar dias assim, mas que eles fazem bem às pessoas lá isso fazem. Parece que as deixam mais alegres e desinibidas. Eu acho.
Moro ao lado de uma escola e, mesmo em frente ao prédio onde vivo, há um outro, mais velho e com imensas varandas, que variam entre dois tamanhos.
Estou no 5º andar, à janela do quarto do meu irmão. No 2º andar do prédio em frente, numa das varandas grandes, está um grupo de 5 rapazes universitários muito… extrovertidos. Um deles está em tronco nu, a falar com uns miúdos que se penduraram nas redes da escola porque ouviram a melodia que saía de casa deles, dos mais velhos. É a mesma melodia que a Dora tem na caixinha de música. O tal rapaz em tronco nu tem problemas de costas. Sei porque traz um daqueles “coletes” para ajudar a mantê-las direitas. Os miúdos estão a gozar com ele e ele diz qualquer coisa como: “Vou fazer queixinhas ao meu pai! Vais ver!”. Um dos miudinhos responde-lhe com sinais.
Eles, os universitários ressacados, têm um megafone e põem se a cantar e a mandar piropos às senhoras que passam.
Os mais pequenos desistiram. Desceram das redes e foram jogar futebol com os outros colegas. Quem não desiste de chamar à atenção é a rapariga de camisola cor-de-laranja, exposta ao sol, duas varandas ao lado da deles. Está à meia hora a fingir que apanha a roupa do estendal, mas quando os rapazes aparecem à varanda, olha logo. Está a ver se engata algum.
Engraçado. Estão a aparecer mais pessoas às varandas. Há uma completamente tapada por plantas, é impossível ver a casa por dentro.
Agora pôs se à varanda uma miúda de azul, a pintar as unhas virada para o (quase) pôr-do-sol.
Por cima da janela dos “extrovertidos” há um quarto cheio de bonecas de porcelana viradas para a rua. Acho-as assustadoras, mas também, ultimamente tudo me assusta.
Cheira-me tanto a torradas. Torradas lembram-me uma conversa que tive há alguns dias atrás.
Vejo coisas mesmo engraçadas aqui (de vez em quando) e nunca ninguém me apanha a espreitar, nem quando o faço com o “táxi”.

Parência.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Choveu muito nos últimos dias. A janela do quarto está suja. Mas vou aproveitar que hoje o céu está limpo para dar uma volta no meu táxi espacial. O meu táxi não é de cera, não tenho medo de cair... Mesmo assim, prefiro passear à noite.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Olívia
O dia mais quente do ano. É assim que se lembram do 5 de Agosto de 1986. Mas eu tenho algo mais a dizer acerca do dia que antecedeu ao fim daquela que seria a mulher mais bonita que alguma vez vi, Olívia.
Já era costume sair da cidade para ir ter com a família à costa e passar uns dias descansado, mas era uma viagem cansativa, o caminho era sempre muito parecido, parecia que não saíamos do lugar. Na verdade, a única coisa de que gostava, era o ter de passar pelos campos girassóis. Não há flor mais bonita. Diminuía a velocidade só para poder apreciá-los melhor, mas naquele dia houve alguma coisa que chamou ainda mais a minha atenção e que fez com que aquela viagem se distinguisse de todas as outras que já havia feito.
Vi-a sentada no alcatrão, na beira da estrada. Mesmo não tendo a certeza se devia, parei o carro e saí para ir ao seu encontro. Estava sentada de uma maneira muito delicada. Tinha as mãos entrelaçadas, pousadas no seu colo e as costas muito direitas. Lembro-me que estava um vento muito quente, um ar abafado e os seus cabelos escuros parecia que voavam. Eram compridos. Aproximei-me mais dela. Não tirava os olhos do outro lado da estrada, dos girassóis, mas sabia que estava lá e disse “estou fria”. Achei aquilo tudo muito estranho. Não lhe quis tocar. Ela quase não pestanejava e com o Sol nas suas costas, pude ver nitidamente os seus olhos, lindos.
Perguntei-lhe se estava bem, mas ela limitou-se a esticar os braços e dizer “leva-me”. Continuava sem tirar os olhos do outro lado da estrada. Só o fez quando a puxei para que se levantasse.
Trazia um vestido colorido e muito curto e por isso, quando se levantou, vi que tinha as pernas muito vermelhas do calor do alcatrão. Como estava descalça, apressei-me a pô-la dentro do carro e quando eu entrei fiz-lhe uma pergunta: “Queres mesmo vir comigo? Não tens medo?” Ela respondeu, com uma voz cansada, que queria chorar e não conseguia.
O resto da viagem foi passado em silêncio e só quando chegamos à estalagem é que ela falou. Virou-se para mim e pela primeira vez olhou-me nos olhos. “Preciso que me aqueças. O meu nome é Olívia.” Eu desviei o meu olhar e saí para lhe abrir a porta. Quase desmaiava. Tive de levá-la ao colo. Quando passaram por mim os meus pais, não deixei que me fizessem perguntas, tratei de pô-la logo num quarto. Deitei-a na cama. Ela disse que queria descansar.
Deixei-a sozinha e antes que começassem o interrogatório fui contar o que tinha acontecido e quem ela era, mesmo não sabendo nada. Tudo aquilo me intrigava. O que fazia ali sozinha? Tão nova e tão bonita… A voz dela a dizer “preciso que me aqueças” ainda ecoava na minha cabeça.
Quando chegou a hora de jantar, fui chamá-la. Bati à porta, como não respondeu, entrei. Ainda estava deitada. Pousei-lhe uns chinelos no chão, acordei-a e disse-lhe para vir jantar, que precisava de comer alguma coisa. Durante o jantar ninguém falou, mas todos os olhos estavam postos nela. Quase não levava comida à boca. Nessa noite, não tentei falar mais com ela.
Na manhã seguinte acordei e fui ao quarto onde ela estava, com a intenção de acordá-la. Achei que um passeio lhe fosse fazer bem. A estalagem ficava numa falésia. Era muito agradável. Bati à porta e chamei por ela, mas quando me virei vi, pela janela, que ela estava ao pé da capelinha. Saí para ir ter com ela. Eu sabia que se sentia sozinha. Quando cheguei lá fora vi que estava em cima de uma rocha, virada para o mar. Fui andando até ela, mas não cheguei a tempo, não pensei… Saltou.
Já não havia nada que eu pudesse fazer. Tenho quase a certeza que, enquanto caía, se apercebeu de que todos os seus problemas tinham solução. Desperdiçou a única hipótese que tinha de viver. Pobre Olívia.





You are crucified by your own limitations.

Sylvia Plath

domingo, 27 de janeiro de 2008

Podes Ficar O Tempo Que Quiseres (ficção)

Queria falar do Martin, um inglês que conheci quando tinha uns 22 anos, um verdadeiro engatatão, mas não sei como começar.
Conheci-o porque era amigo de um amigo de um amigo de uma amiga minha, a Diana, num bar no Porto. Estava cá de passagem. Um tipo cheio de manias esquesitas. Disse-me que quando cortava as unhas dos pés, as media. E também me lembro de ele me dizer que só bebia chá inglês, que era o melhor, mas dizia-o sem nunca ter experimentado outros. Isso nem tem assim muita importância. O Martin não tem importância. Perguntem me porque estou a falar nele que eu respondo-vos: "não sei".
Esteve uma semana cá e dormiu com duas amigas minhas, fazendo questão de contar a toda a gente que o tinha feito. Tinha 28 anos, há miúdas que gostam de tipos mais velhos e a verdade é que ele até era giro. Tinha olhos cinzentos e o cabelo longo. Usava um anel no indicador direito. Eu trazia um no polegar quando o conheci, parecido com o dele. Acabamos por trocar anéis. Não, não dormi com ele, mas dançamos ao som de The Kinks até às 5h da manhã.
Contou-nos que vivia com os pais. "Sometimes girls call me a 'mummy's boy'", muito orgulhoso disso. "I think they like it". Ainda por cima, depois das noites de "wild sex", segundo ele, punha a mãe a cozinhar para as "chicks".
Depois desta noite nunca mais o vi.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O Bolo Frívolo Uma homenagem a Fuschia, a minha musa.

Havia um frívolo bolo sarapintado
Que navegava num mar sem sentido
Ou por qualquer lúgubre lago
Muito livre e bem assumido.
Desarticulado, quão desarticuladamente
Esse bolo frívolo navegava
Sobre as ondas de um oceano sem mente
Atirando peixes para um céu cor de malva.

Havia aí muitos, intensos pargos
De uma glória incomparável
E todo o lucro desses trabalhos amargos
Era atirado para esse céu arável.

Pelas lustrosas vagas sobre as cristas
Junto aos pescadores voava, de uma maneira ociosa,
O bolo frívolo com uma faca espetada
Nela e na sua tripulação de passas, melosa,
Como o sorriso de um espadarte saltitava com muita arte
(Essa faca de mesa azul e poderosa)
E o bolo frívoloenchia-se até cima
Com a sua tripulação de passas, melosa.

Havia aí muitos, imensos pargos
De uma glória incomparável
E todo o lucro desses trabalhos amargos
Era atirado para esse seu arável.

Em torno das praias das Ilhas Elegantes
Onde o peixe-gato a saltar ronronava
Lambendo as patas e os sorrisos brilhantes
E das suas barbatanas de pêlo cuidava,
Voava, voava sobre o céu cor de malva
O bolo frívolo e a faca
Que piscava o seu olho azulado
À espera de um casamento anunciado.

As migalhas espalhavam-se por esse mar sem sentido
Pelo bater do coração desse bolo
E a faca de aço sentia o melaço
De uma paixão sem boca ou ouvido.
Pela velocidade da luz eram espalhadas
Essas migalhas aos pais dedicadas,
E o ar tropical vibra agora a zumbir
Por esse bolo de amor ainda por vir.

O poema preferido da Fuschia, escrito por alguém que não eu.