sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Consolação
Quando as flores morreram, morreu toda a sua esperança de ser feliz para sempre. O homem que lhe oferecera as flores, fizera-lhe inúmeras promessas que agora quebrava.
Com o coração a mil, os olhos inchados, a cabeça a arder e o rosto molhado, era difícil descansar, mesmo por uns minutos. Sentia-se traída. Passou a noite em claro, à espera de uma resposta, de um consolo, que nunca chegou. Passou-se uma semana sem que não saísse da cama e não parasse de chorar. Morreu de desgosto ao fim de sete intermináveis e penosos dias. Deteriorada pela fome, pela falta de movimentos, pela solidão. Partiu sem o calor que lhe haviam prometido ser eterno. Partiu deixando a sua própria dor cravada no peito daquele que provocara o seu terrível fim. Cravou tão fundo que também ele acabou por morrer. Foi a segunda vítima de um arrependimento que chegou tarde demais. Mas ela podia agora, finalmente, dormir.
sexta-feira, 26 de junho de 2009
sábado, 20 de junho de 2009
Forrei as paredes do teu quarto com imagens que recortei de revistas e jornais presos na minha alma
Gostei sempre de contar as vidas dos outros. Ouvi, com prazer, tudo o que tinham para contar, sem nunca parar para pensar na minha própria história e em como seria bom poder contá-la a alguém. Nunca fiz questão de ser ouvida, também porque para mim foi sempre muito mais fácil dizer o que sentia, quando era necessário dizê-lo, escrevendo.
Gostava de me sentar no teu quarto e passar horas a escrever para ti, sem nunca te dar a conhecer uma única palavra. Não fico mais triste por isso. Quando me deito ao teu lado e me beijas, como se nunca o tivesses feito, sei que descobres a minha alma e vasculhas todas as suas gavetas e assim me vais amando e assim eu vou contando a minha história, aos teus lábios cor-de-rosa.
sexta-feira, 12 de junho de 2009
domingo, 24 de maio de 2009
Ele nunca soube, mas procuraram Olívia. Tenho a certeza que o fariam até ao fim-do-mundo. O que ele também nunca soube é que ela não morreu quando se atirou ao mar. Foi vista a passear por um campo de girassóis em Dordogne, na França. Como chegou lá, ninguém sabe. Levaram-na até à família e hoje, sem trocar uma única palavra com alguém, fechada em casa pela mãe, passa o dia entre flores, tem sempre o cabelo esticado e só veste cores claras. Os seus pensamentos nunca foram tão puros.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
"O universo numa casca de noz"
Lidía Sture, a esgrouviada
O Professor Artur era um homem muito estranho, que me intrigava bastante. Eu passava as aulas a imaginar como seria a sua casa, se teria uma grande biblioteca, se gostaria de Ingres, se sonharia com Frida e se era realmente um filósofo. Divagava durante horas acerca do mito de Babel, da física teórica, de Rubens e Kandinsky, de Saramago e d' "Os Últimos Instantes de Sócrates". Era culto, infeliz, exigente. Dizia que "errar é humano", mas a verdade é que não tolerava erros. Um verdadeiro sofista. Uma vez disse-nos: "protejam-me do que eu quero"! Não percebi bem o que ele queria dizer com aquilo, mas pensei em tudo o que ele me ensinara e respondi que "o homem não é só mental" e era "preciso tornar isso claro". Ele não sorriu e eu concluí que ele nunca mais me ouviria.
Disse calúnias do Professor durante muito tempo, mas passados alguns anos percebi que estava apaixonada por ele. Ou seria pelo Trotsky? Não sei bem... E o meu bigode, será que o devia deixar crescer?
Lidía Sture, a esgrouviada
sábado, 14 de março de 2009
Teorias
Toda a gente se apaixonava por ele. Era uma pessoa bonita e muito interessante, é verdade, mas as relações nunca passavam dos 3 meses, até que apareceu a Miríam e transformou tudo à volta dele.
Foi diferente. Só sabiam amar juntos. E soavam tão bem como uma Dança de Tchaicovsky.
Houve sempre muita falta de comunicação entre ele e os que dele se aproximavam. Já com a Miríam... Surprendeu-o com um beijo que ainda hoje o faz render-se. Não avisou antes nem precisou de dizer nada depois.
Eu já sabia que as palavras atrapalhavam muito na hora de expôr o coração ao resto do mundo, mas é sempre bom ter como provar uma teoria. Toda a gente sabia que tudo era relativo, mesmo antes do Einstein, mas ele provou-o e tirou-nos o mérito. Se bem que todos dizem que a teoria nada tem que ver com o que é relativo ou não, mas não liguem ao que eu digo, não vale a pena. O que sabe sobre relações e ciência uma velha solteira e ignorante de 42 anos? Nada, claro.
"Beijar-te não foi esclarecedor?", escreveu-lhe Miríam nas costas, com beijos.
terça-feira, 3 de março de 2009
Celebrar a Bossa Nova
Eram 2h da manhã. No quarto que ficava no sótão a bebé Lavínia dormia, tranquila, e o gato Louco, preso à porta do armário, miava, impaciente. No rés-do-chão, já deitados, Dalila e Zé trocavam beijos e abraços, cúmplices como sempre. Mas a noite ainda estava a começar para os amigos que, na sala, entre litros de vinho e charutos, faziam a festa.
Na casa de que vos falo nunca faltou vinho e música. Às pessoas que nela moravam, e que por ela passavam, nunca vi faltar a boa-disposição e a vontade de festejar. Era uma casa de e para artistas, e Lavinía era a mais recente obra-prima.
O Diogo fazia anos. Era o seu primeiro aniversário como pai, o que lhe parecia um duplo motivo para celebrar. Passavam meses sem se ver e depois bebiam até não poder mais, dançavam toda a noite, habituados a bailes, conversavam e riam. Passavam-se horas assim, era como se estivessem estado sempre juntos. As músicas estavam sempre na ponta da língua, prontas a serem cantadas. Os abraços mostravam-se sinceros. As gargalhadas também.
Aquela festa foi especial para todos. Tinham se passado dois anos desde a última e muito tinha mudado na vida de todos eles. Quando a voz que saía da rádio se deixou espalhar por toda a sala e se ouviu que o amor se deixa surpreender enquanto a noite nos vem envolver, a Teresa e o Luís beijaram-se. Estavam prestes a começar, juntos, a vida que andavam a tentar esquecer há quase 10 anos. Dali a uns meses já se tinham mudado para uma casa nova, já pensavam em filhos. Mais do que tudo queriam ver o mundo, vivê-lo.
Eram 2h da manhã. No quarto que ficava no sótão a bebé Lavínia dormia, tranquila, e o gato Louco, preso à porta do armário, miava, impaciente. No rés-do-chão, já deitados, Dalila e Zé trocavam beijos e abraços, cúmplices como sempre. Mas a noite ainda estava a começar para os amigos que, na sala, entre litros de vinho e charutos, faziam a festa.
Na casa de que vos falo nunca faltou vinho e música. Às pessoas que nela moravam, e que por ela passavam, nunca vi faltar a boa-disposição e a vontade de festejar. Era uma casa de e para artistas, e Lavinía era a mais recente obra-prima.
O Diogo fazia anos. Era o seu primeiro aniversário como pai, o que lhe parecia um duplo motivo para celebrar. Passavam meses sem se ver e depois bebiam até não poder mais, dançavam toda a noite, habituados a bailes, conversavam e riam. Passavam-se horas assim, era como se estivessem estado sempre juntos. As músicas estavam sempre na ponta da língua, prontas a serem cantadas. Os abraços mostravam-se sinceros. As gargalhadas também.
Aquela festa foi especial para todos. Tinham se passado dois anos desde a última e muito tinha mudado na vida de todos eles. Quando a voz que saía da rádio se deixou espalhar por toda a sala e se ouviu que o amor se deixa surpreender enquanto a noite nos vem envolver, a Teresa e o Luís beijaram-se. Estavam prestes a começar, juntos, a vida que andavam a tentar esquecer há quase 10 anos. Dali a uns meses já se tinham mudado para uma casa nova, já pensavam em filhos. Mais do que tudo queriam ver o mundo, vivê-lo.
Houve falta de comunicação durante todo o tempo que precedeu aquele momento (a do tipo não-verbal, se me faço entender). A bossa nova chegou para ajudar.
Depois do aconchego e do beijo na testa da Lavínia, o gato Louco miava, mas agora pachorrento, em direcção ao telhado, salvo por Diogo.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
Depois de ti passei a dar mais valor aos dias. Comecei a contá-los, um por um, até que me apercebi de que a vida estava a passar por mim e eu continuava parada, sem fazer nada. Era preciso tomar uma atitude.
Hoje, levanto-me e afasto-me do piano. Ouço aplausos, vejo os outros levantarem-se também e choro, como chorei por ti, swain. Cai uma tulipa aos meus pés e na minha cabeça começo a ouvir a tua voz enquanto citavas Oscar Wilde, acompanhada por imagens daquela tarde, do sol a entrar pela janela aberta da sala, da música que tocava, de como me estendia no sofá à espera que viesses até mim, do teu cheiro a ópio. O último beijo que me deste… Não aproveitei nada daquilo como devia, como teria aproveitado se soubesse que não haveria mais.
Não me teria lembrado de tudo isto, não fosse tu estares mesmo à minha frente, na primeira fila, a olhar para mim com um sorriso estampado na cara, e sou sincera, não gosto do que estou a sentir. É descarado esse teu ar satisfeito e autoconvencido. De que serve agora todo o esforço que fiz e todo o tempo que levei para me convencer de que eras frio e insensível? ´
Hoje, levanto-me e afasto-me do piano. Ouço aplausos, vejo os outros levantarem-se também e choro, como chorei por ti, swain. Cai uma tulipa aos meus pés e na minha cabeça começo a ouvir a tua voz enquanto citavas Oscar Wilde, acompanhada por imagens daquela tarde, do sol a entrar pela janela aberta da sala, da música que tocava, de como me estendia no sofá à espera que viesses até mim, do teu cheiro a ópio. O último beijo que me deste… Não aproveitei nada daquilo como devia, como teria aproveitado se soubesse que não haveria mais.
Não me teria lembrado de tudo isto, não fosse tu estares mesmo à minha frente, na primeira fila, a olhar para mim com um sorriso estampado na cara, e sou sincera, não gosto do que estou a sentir. É descarado esse teu ar satisfeito e autoconvencido. De que serve agora todo o esforço que fiz e todo o tempo que levei para me convencer de que eras frio e insensível? ´
Agora penso nas barbaridades que gostava de ter dito e feito de todas as vezes que estive contigo, nos abraços que te quis dar quando senti um impulso para os dar e não dei. Como gostava que me tivesses conhecido, de verdade.
Maldito sejas, que vens para me atormentar! Porquê agora? Porquê ao fim deste tempo todo? Não me lembro de alguma vez teres dito que gostavas de solos de piano e é tarde demais para "Nunca mais disseste nada"...
Agora não tenho como fugir. Os Balcãs estão longe e a cortina ainda não desceu.
Maldito sejas, que vens para me atormentar! Porquê agora? Porquê ao fim deste tempo todo? Não me lembro de alguma vez teres dito que gostavas de solos de piano e é tarde demais para "Nunca mais disseste nada"...
Agora não tenho como fugir. Os Balcãs estão longe e a cortina ainda não desceu.
sexta-feira, 26 de dezembro de 2008
sábado, 11 de outubro de 2008
sábado, 23 de agosto de 2008
3:53
Na rua onde eu morava viviam duas irmãs gémeas, a Rosa e a Fuschia. A Rosa queria ser princesa. Aos 13 anos descobriu que os príncipes só comiam frango assado e mudou de ideias. A Fuschia queria saber tudo sobre. Não sabia (quase) nada.
“Quem brinca com o gato arranha-se”, dizia a Rosa. “Quem procura sarilhos arranja-os”, concluía a Fuschia.
“Quem brinca com o gato arranha-se”, dizia a Rosa. “Quem procura sarilhos arranja-os”, concluía a Fuschia.
sexta-feira, 4 de julho de 2008
Sal na Pele
Vivia entre duas aldeias piscatórias, numa casa pequena, perto de Yorkshire, Inglaterra. Era a mais nova de sete irmãos e chamava-se Virginía, mas todos a tratavam por "Wolf", porque todos sabiam que o seu nome, assim como o dos seus irmãos, que se chamavam Oscar, Sylvia, Hans, Margueritte, Ernest e William, era uma homenagem à literatura, paixão da sua mãe.
Desde pequena que Wolf se deixava deslumbrar pelo mar. Aprendeu a deslumbrar-se, respeitando-o, já que era o sustento da sua familía. Mesmo vivendo com um certo receio de perder o pai e os irmãos para o mar, continuava a sonhar navegá-lo: desejava-o. Quando entrávamos no seu quarto, pequeno e proporcional à casa, não era possível ver as paredes, apenas grandes mapas cheios de pontos vermelhos que correspondiam a lugares onde Wolf queria chegar com o Liberty, o barco da familía. Mas as paredes do seu quarto também serviam de local de exposição para as fotografias e retratos tirados por Jonathan, o seu maior amigo, com quem partilhava o gosto pelas viagens.
Wolf lembrava-se da primeira vez que embarcou no Liberty "como se tivesse sido hoje mesmo". No entanto, já passava mais de uma década.
Em todas as viagens que fez no seu barco, Wolf não dispensou levar consigo o telescópio oferecido pelo seu irmão Hans, a quem carinhosamente apelidou de Stardust, e Lisboa, o seu Terra Nova, o maior Terra Nova do norte de Yorkshire, oferecido ao seu pai por um marinheiro português com quem fez amizade. Um verdadeiro "Newfoundland" para uma Wolf com vontade de descobrir o mundo.
Saíam do porto de madrugada, todos os dias, e voltavam sempre de manhã cedo, para vender o que o mar lhes tinha dado durante a noite. Nas noites em que Wolf não saía para o mar, ou porque tinha de estudar, ou porque alguém tinha de cuidar da avó Elizabeth, sentia que o resto do dia não faria qualquer sentido. Fazia-lhe falta o trabalho dentro do barco. Faziam-lhe falta as tentativas falhadas de conseguir sintonizar o rádio do barco numa estação nacional.
"Wo(o)lf of the Seas", como passou a chamar-lhe Roger, o amigo de Hans, Ernest e Oscar, que trabalha no barco em troca de umas boleias até ao porto principal, era a única na familía, para além do pai e dos irmãos, que se sentia feliz a lançar e recolher redes, ou a pôr peixe em caixas de gelo.
Nos dias em que não tinha muitos recados a fazer, nem aulas de tarde, Wolf gostava de estar com Jonathan. Os seus dias resumiam-se: à falésia, se estivesse mais frio; à colina, se estivesse mais calor; ao laboratório de fotografia que Jonathan havia montado na casa-de-banho do quintal de sua casa; ou ao "Áncora", o pub. Se Jonathan não podia estar com ela, então juntava-se ao pai em interminavéis sessões de cinema. Os filmes do Jacques Costeau eram os preferidos do pai, que os devorava durante horas.
Jonathan andava a insistir, há já algum tempo, em tirar-lhe umas fotografias e então combinaram encontrar-se na falésia, local de eleição. Tudo era partilhável, entre os dois. No dia da sessão de que Jonathan tanta questão fazia, não foi diferente. As palavras não foram muitas, mas os gestos valeram mais. Gostavam de beijos e abraços.
Havia qualquer coisa de estranho entre os dois e ambos sabiam disso. Jonathan queria tocar-lhe e não parar de fazê-lo e ao contrário do que sempre imaginou, Wolf não se sentia nada incomodada com isso.
Naquela tarde na falésia, Virginía Wolf, com o vento a soprar-lhe nos cabelos aloirados e com os olhos em Jonathan, que a olhava através da lente da máquina, decidiu aproximar-se do amigo, desviou a máquina e beijou-o. Voltou a afastar-se, mas pouco, e ficou à espera que o seu beijo fosse retribuído. Não esperou muito.
A noie estava quase a cair. Caía cedo, de Inverno. Wolf foi para casa, mas combinou encontrar-se com ele após o jantar, perto do "Áncora".
Habituada ao sal na pele e ao cheiro a peixe nas mãos, cortadas pelas redes que fiava, ela e os irmãos iam sair para o mar, mas o pai hoje não ia, estava doente, por isso iam trabalhar a dobrar.
Terminado o jantar, vestiu a sua camisola mais quente e pegou no impermeável. Pôs a mochila às costas, pegou no Stardust e chamou Lisboa. Foi ter com Jonathan, como combinado. Por volta da meia-noite, despediu-se do amigo e dirigiu-se ao Liberty. Havia muito a preparar ainda, mas estava ansiosa para mais uma saída nocturna no barco. Tudo para além do mar podia esperar mais uma noite.
Nunca conheci a Woolf, mas gostava que, em algum momento e por algum motivo, a minha vida se tivesse cruzado com a dela. Incrível a quantidade de coisas que podemos deixar escritas num diário sem nunca pensarmos, se quer, na hipótese de um dia o perdermos.
sexta-feira, 27 de junho de 2008
sábado, 14 de junho de 2008
domingo, 18 de maio de 2008
Guerra
“Eu fui amaldiçoada.”, Acho que esta é uma das frases que mais ouvi a minha mãe dizer e tudo porque o meu pai morreu sem me conhecer.
Morreu novo, na guerra, e a minha mãe viu tudo, era repórter na altura. Achava que tinha uma missão, que devia passar por momentos cruéis, ver sangue e morte para depois mostrar ao mundo os podres da guerra e de quem a faz. Claro que depois apareceu o meu pai e a minha mãe começou a ver a vida de outra maneira.
Ela dizia que ele era um homem muito bonito e que eu tinha mais traços dele do que dela. As sardas e os cabelos pretos nunca foram uma combinação muito vulgar.Acho que ele era um homem muito bom e um dos melhores soldados, mesmo tendo sido forçado a entrar naquela guerra. Ele estava contra ela e por isso não devia ter morrido a combater.
A vida abandonou o meu pai mais cedo do que o que era suposto e eu e a minha mãe estávamos destinadas a ficar sozinhas, porque ela não estava disposta a amar outra vez. Acredito que se fosse ao contrário, se tivesse sido a minha mãe a morrer, o meu pai ia sentir o mesmo. Eles eram o mesmo ser, completavam-se e nunca pensaram, se quer, em separar-se. Uma vez a minha mãe disse-me que é muito difícil sentir-se amor, carinho, amizade e paixão pela mesma pessoa, e eles conheceram-se num momento tão complicado, passaram tanto tempo juntos, que acabaram por sentir tudo isso um pelo outro.
Foi a minha mãe que encontrou o meu pai morto e isso foi o pior que podia ter acontecido. Nunca mais tirou a imagem do corpo dele, desfeito, da sua cabeça. Desde aí, a ideia de que também ela devia ter morrido não a abandonou mais, assim como as doenças que começaram a afecta-la tanto psicológica como fisicamente, doenças essas que acabaram por tirá-la de mim.
Ela tinha um baú onde guardava todos os retratos que tirou do meu pai e todas as imagens de medo e ódio que captou com a sua Zeiss Ikon que tanto adorava. Hoje esse baú é meu, é parte do que eu sou e também como a minha mãe eu abro-a todos os dias e penso o quão irónica e imprevisível a vida é.
Para ser sincera, agora eu é que me sinto amaldiçoada. Nem duas décadas de vida tenho e já sou orfã de pai e mãe. Ela deixou-me, finalmente conseguiu o que queria, vai ter com ele, e não sei se hei de ficar feliz por isso, por o sofrimento dela ter acabado, ou se me hei de sentir a pessoa mais atraiçoada do mundo por ter tido uma mãe que nunca soube amar sozinha. Deixou-me, sem piedade, porque viveu todos estes anos submersa no passado, esquecendo-se que metade de mim é ele e que eu podia ter sido o motivo para continuar viva.
A minha mãe viveu de amor e egoísmo, viveu das sombras da guerra. Não era perfeita e acabou por morrer nas mãos do que a manteve viva.
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