domingo, 18 de maio de 2008

Guerra

“Eu fui amaldiçoada.”, Acho que esta é uma das frases que mais ouvi a minha mãe dizer e tudo porque o meu pai morreu sem me conhecer.
Morreu novo, na guerra, e a minha mãe viu tudo, era repórter na altura. Achava que tinha uma missão, que devia passar por momentos cruéis, ver sangue e morte para depois mostrar ao mundo os podres da guerra e de quem a faz. Claro que depois apareceu o meu pai e a minha mãe começou a ver a vida de outra maneira.
Ela dizia que ele era um homem muito bonito e que eu tinha mais traços dele do que dela. As sardas e os cabelos pretos nunca foram uma combinação muito vulgar.Acho que ele era um homem muito bom e um dos melhores soldados, mesmo tendo sido forçado a entrar naquela guerra. Ele estava contra ela e por isso não devia ter morrido a combater.
A vida abandonou o meu pai mais cedo do que o que era suposto e eu e a minha mãe estávamos destinadas a ficar sozinhas, porque ela não estava disposta a amar outra vez. Acredito que se fosse ao contrário, se tivesse sido a minha mãe a morrer, o meu pai ia sentir o mesmo. Eles eram o mesmo ser, completavam-se e nunca pensaram, se quer, em separar-se. Uma vez a minha mãe disse-me que é muito difícil sentir-se amor, carinho, amizade e paixão pela mesma pessoa, e eles conheceram-se num momento tão complicado, passaram tanto tempo juntos, que acabaram por sentir tudo isso um pelo outro.
Foi a minha mãe que encontrou o meu pai morto e isso foi o pior que podia ter acontecido. Nunca mais tirou a imagem do corpo dele, desfeito, da sua cabeça. Desde aí, a ideia de que também ela devia ter morrido não a abandonou mais, assim como as doenças que começaram a afecta-la tanto psicológica como fisicamente, doenças essas que acabaram por tirá-la de mim.
Ela tinha um baú onde guardava todos os retratos que tirou do meu pai e todas as imagens de medo e ódio que captou com a sua Zeiss Ikon que tanto adorava. Hoje esse baú é meu, é parte do que eu sou e também como a minha mãe eu abro-a todos os dias e penso o quão irónica e imprevisível a vida é.
Para ser sincera, agora eu é que me sinto amaldiçoada. Nem duas décadas de vida tenho e já sou orfã de pai e mãe. Ela deixou-me, finalmente conseguiu o que queria, vai ter com ele, e não sei se hei de ficar feliz por isso, por o sofrimento dela ter acabado, ou se me hei de sentir a pessoa mais atraiçoada do mundo por ter tido uma mãe que nunca soube amar sozinha. Deixou-me, sem piedade, porque viveu todos estes anos submersa no passado, esquecendo-se que metade de mim é ele e que eu podia ter sido o motivo para continuar viva.
A minha mãe viveu de amor e egoísmo, viveu das sombras da guerra. Não era perfeita e acabou por morrer nas mãos do que a manteve viva.