sexta-feira, 4 de julho de 2008

Sal na Pele
Vivia entre duas aldeias piscatórias, numa casa pequena, perto de Yorkshire, Inglaterra. Era a mais nova de sete irmãos e chamava-se Virginía, mas todos a tratavam por "Wolf", porque todos sabiam que o seu nome, assim como o dos seus irmãos, que se chamavam Oscar, Sylvia, Hans, Margueritte, Ernest e William, era uma homenagem à literatura, paixão da sua mãe.
Desde pequena que Wolf se deixava deslumbrar pelo mar. Aprendeu a deslumbrar-se, respeitando-o, já que era o sustento da sua familía. Mesmo vivendo com um certo receio de perder o pai e os irmãos para o mar, continuava a sonhar navegá-lo: desejava-o. Quando entrávamos no seu quarto, pequeno e proporcional à casa, não era possível ver as paredes, apenas grandes mapas cheios de pontos vermelhos que correspondiam a lugares onde Wolf queria chegar com o Liberty, o barco da familía. Mas as paredes do seu quarto também serviam de local de exposição para as fotografias e retratos tirados por Jonathan, o seu maior amigo, com quem partilhava o gosto pelas viagens.
Wolf lembrava-se da primeira vez que embarcou no Liberty "como se tivesse sido hoje mesmo". No entanto, já passava mais de uma década.
Em todas as viagens que fez no seu barco, Wolf não dispensou levar consigo o telescópio oferecido pelo seu irmão Hans, a quem carinhosamente apelidou de Stardust, e Lisboa, o seu Terra Nova, o maior Terra Nova do norte de Yorkshire, oferecido ao seu pai por um marinheiro português com quem fez amizade. Um verdadeiro "Newfoundland" para uma Wolf com vontade de descobrir o mundo.
Saíam do porto de madrugada, todos os dias, e voltavam sempre de manhã cedo, para vender o que o mar lhes tinha dado durante a noite. Nas noites em que Wolf não saía para o mar, ou porque tinha de estudar, ou porque alguém tinha de cuidar da avó Elizabeth, sentia que o resto do dia não faria qualquer sentido. Fazia-lhe falta o trabalho dentro do barco. Faziam-lhe falta as tentativas falhadas de conseguir sintonizar o rádio do barco numa estação nacional.
"Wo(o)lf of the Seas", como passou a chamar-lhe Roger, o amigo de Hans, Ernest e Oscar, que trabalha no barco em troca de umas boleias até ao porto principal, era a única na familía, para além do pai e dos irmãos, que se sentia feliz a lançar e recolher redes, ou a pôr peixe em caixas de gelo.
Nos dias em que não tinha muitos recados a fazer, nem aulas de tarde, Wolf gostava de estar com Jonathan. Os seus dias resumiam-se: à falésia, se estivesse mais frio; à colina, se estivesse mais calor; ao laboratório de fotografia que Jonathan havia montado na casa-de-banho do quintal de sua casa; ou ao "Áncora", o pub. Se Jonathan não podia estar com ela, então juntava-se ao pai em interminavéis sessões de cinema. Os filmes do Jacques Costeau eram os preferidos do pai, que os devorava durante horas.
Jonathan andava a insistir, há já algum tempo, em tirar-lhe umas fotografias e então combinaram encontrar-se na falésia, local de eleição. Tudo era partilhável, entre os dois. No dia da sessão de que Jonathan tanta questão fazia, não foi diferente. As palavras não foram muitas, mas os gestos valeram mais. Gostavam de beijos e abraços.
Havia qualquer coisa de estranho entre os dois e ambos sabiam disso. Jonathan queria tocar-lhe e não parar de fazê-lo e ao contrário do que sempre imaginou, Wolf não se sentia nada incomodada com isso.
Naquela tarde na falésia, Virginía Wolf, com o vento a soprar-lhe nos cabelos aloirados e com os olhos em Jonathan, que a olhava através da lente da máquina, decidiu aproximar-se do amigo, desviou a máquina e beijou-o. Voltou a afastar-se, mas pouco, e ficou à espera que o seu beijo fosse retribuído. Não esperou muito.
A noie estava quase a cair. Caía cedo, de Inverno. Wolf foi para casa, mas combinou encontrar-se com ele após o jantar, perto do "Áncora".
Habituada ao sal na pele e ao cheiro a peixe nas mãos, cortadas pelas redes que fiava, ela e os irmãos iam sair para o mar, mas o pai hoje não ia, estava doente, por isso iam trabalhar a dobrar.
Terminado o jantar, vestiu a sua camisola mais quente e pegou no impermeável. Pôs a mochila às costas, pegou no Stardust e chamou Lisboa. Foi ter com Jonathan, como combinado. Por volta da meia-noite, despediu-se do amigo e dirigiu-se ao Liberty. Havia muito a preparar ainda, mas estava ansiosa para mais uma saída nocturna no barco. Tudo para além do mar podia esperar mais uma noite.
Nunca conheci a Woolf, mas gostava que, em algum momento e por algum motivo, a minha vida se tivesse cruzado com a dela. Incrível a quantidade de coisas que podemos deixar escritas num diário sem nunca pensarmos, se quer, na hipótese de um dia o perdermos.